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O blogue do programa de música pop em português
da Rádio Centre-Ville FM, 102,3, Montréal.

28.10.04

TANTAS CANÇÕES

Elocubrações umbilicais na sacada enquanto fumava um cigarro: minha mãe vai fazer 70 anos o ano que vem. Eu vou estar com a metadinha, 35. Quer dizer, vou estar com a idade que ela tinha quando me teve (é, mané, acontece com todo mundo, não sou ungida nem tem truque não). Quer dizer, na minha idade, ela tinha uma carreira encaminhadíssima, três filhos, casa própria etc etc... E eu? Sou uma estudante loser sem grana pra cerveja, tenho uma carreira abandonada e várias opções que de tão abertas tão mais pra escancaradas, e minhas perspectivas de adquirir um imóvel resumem-se às chances de comprar, quem sabe, um aquário com um peixinho.

Mas quanta música eu já ouvi, meu deus. Quando eu tinha uns 10 anos eu provavelmente já tinha alcançado a minha mãe em quantidade de música ouvida - na vida dela até os 70. E olha que eu sou uma ouvinte lousy, preguiçosa, que adora conforto. Lembro em conversa com Beto e Wesley, faz uns 15 anos, dizendo que não ouvia tecno porque gostava de canções tão-somente. Até hoje ele me tiram, porque eu seguida disse que curtia Sepultura sim, e "canção do Sepultura", bom, é um conceito válido, mas infelizmente soa estúpido.

Com o lance da rádio, passei a fazer mais pesquisa em áreas que jamais arriscaria. O que é bom. Mas amplia ainda mais, numa hora de desespero, sufocamento de excesso. Ando sofrendo, desde uns dez anos pra cá, de agorafobia musical. Num papo no Soulseek tava falando com um guri que disse que antes dos p2p adorava música, mas o amor cessou depois que ele tem mais arquivos no micro do que será capaz de ouvir jamais.

Fato é que eu gosto cada vez mais de música, mas a relação mudou. Shows eu curtia, agora tenho cada vez menos paciência. Meu gosto se expandiu muito também, e não lembro de um estilo que eu possa dizer "num dá". Muito disso é pelo acesso fácil. Faça um teste: pega um estilo que você não agüenta, passa um dia pesquisando na rede figuras "de ponta", ou "originais" ou "vanguarda" ou "únicas" naquele estilo (tá, tem uns gêneros que não sustentam esses rótulos, mas você é inteligente e saberá adaptar). Baixa a música. Compara com o mais banal do mesmo gênero. Pronto, já dá pra criar um gostinho pelo cara que tá tentando mais. Até fado eu ouço agora. (Tá, é verdade, ouço pra escolher o "Fado Obrigatório" que tem que rolar no meu outro programa, o Sexta Livre. Ha.) Mas ouço, e aprecio. Yeah. Tantas canções.




23.10.04

COMER COMER

G.K. Chesterton já disse que comer ouvindo música é um insulto ao cozinheiro e ao violonista. Eu cá quase sempre acho o mesmo. Afinal, o cantor de churrascaria não virou um mito nacional à toa. Mas cantar sobre comes e bebes é uma história diferente, e uma tradição no nosso cancioneiro. Comida é metáfora para o ser amado - como na maravilhosa Amendoim Torradinho, imortalizada na voz de Ângela Maria -, ou simplesmente o tema direto e reto de inúmeras canções, Vatapá (Dorival Caymmi) e Feijoada Completa (Chico Buarque) vindo à mente mais rapidamente. João Bosco e Aldir Blanc fizeram o clássico hino de tons esquerdistas Rancho da Goiabada, uma marcha-rancho que fala sobre desejos alimentares nunca saciados pelos bóias-frias, que tomam então uma cachaça pra enquentar o estômago.

Em um mundo em que metade das pessoas sabe o que a outra metade faz, não podemos viver com fome e desnutrição em uma parte do mundo enquanto as pessoas da outra parte não são apenas bem-nutridas, mas supernutridas.

Hoje, pela primeira vez na história da humanidade, temos a capacidade produtiva de alimentar a todos no mundo, e o conhecimento técnico para garantir que os estômagos estejam não apenas cheios mas também que seus corpos estejam nutridos adequadamente com os ingredientes essenciais para o crescimento e a saúde.

O problema básico é ético.


Margaret Mead, 1969.



Eis a lista de canções do último Parababélico:

renato cohen - light galinha 5'33

jair oliveira e otto - fome danada 2'31

pato fu - pinga 3'40

mão morta - gin tonic 3'11

dead combo - polaroid omelete 2'46

joão afonso - segredos da cozinha

ghoak - a vingança da beringela 2'17

tara perdida - batata frita '37

ena pá 2000 - pudim '41

rogério skylab - carne humana 3'28

itamar assumpção e jards macalé - laranja madura 5'58

otto - café preto 3'17

Não deu tempo de tocar tudo... Considere esta lista como um "ideal".

15.10.04

ÁGUA!!!!!!!!

Lá vai a lista das músicas do Parababélico de hoje, que terá o tema "água", com links para as páginas dos artistas (oficiais sempre que disponível):

0. Suba - Na Neblina 4'43

1. Clã - H2Omem 4'27

2. Ornatos Violeta - Chuva 1'31

3. Cordel do Fogo Encantado - Tempestade 3'28

4. Cascabulho - Prosa de Rio é Oferenda de Siri 2'45

5. Seu Jorge - "Hágua" 4'03

6. Pato Fu - Água 4'08

7. Tribo de Jah - Azul da Cor do Mar 3'21

8. Skank - Dois Rios 4'42

Imagine tentar viver em um mundo dominado por óxido de hidrogênio, um composto químico que não tem gosto ou cheiro e é tão variável em suas propriedades que geralmente apresenta-se de forma benigna mas em outras ocasiões é terrivelmente letal. Dependendo de seu estado, pode escaldar ou congelar uma pessoa. Na presença de certas moléculas orgânicas, pode formar ácidos carbônicos tão ferozes que destróem as folhas de árvoras e carcomem rochas. Em grandes quantidades, quando agitado, pode atacar com tal fúria que nenhum edifício humano poderia suportar. Mesmo para aqueles seres que aprenderem a viver com tal subtância, freqüentemente ela é mortal. Nós chamamos este composto de água.
[Bill Bryson, em A Short History of Nearly Everything]

torre de água saudita Posted by Hello

NO AGUARDO DA REVOLUÇÃO (ah tá...)

Em papo com o meu amigo cineasta conhecido como "o sérbio louco" sobre a falada revolução do cinema por conta das baratas câmeras digitais, vi-me fazendo uma apologia elitista, mal-grado meu. Defendi o argumento simples de que papel e caneta baratos nunca geraram uma revolução literária, porque o que vale é a distribuição (as editoras), que é sempre controlada pelas garras de uma elite que, darwinianamente, agarra-se com unhas e dentes a seus privilégios, ainda que por vezes inconscientemente. Pior: mesmo que se "democratize" a distribuição, os canais tradicionais definidores de quem vai levar os louros (a mídia impressa e televisionada), de quem tem valor, de quem está no topo, continuam a operar nos novos meios.

Senão, vejamos. Napster primeiro e depois Soulseek e Kazaa pareciam uma revolução na distribuição da música pop: fácil, gratuito, com recursos bacanas e potencial imenso. A histeria do Metallica e Madonna pareciam, antes de mais nada, ótimos sinais de que o status quo dos latifundiários do pop estava ameaçado. Êba! Vai daí que, anos depois do uso de programas P2P, o que se vê? Neguinho baixando música sem a menor criatividade. Britney e Eminem estão na parada de Hong Kong, Califórnia, e do ciberespaço - no próprio Soulseek.

Mas o sinal que mais evidencia a mania do usuário de se manter preso aos paradigmas antigos de consumo musical é a forma que se baixa música no maior P2P do planeta: álbuns inteiros. Tem gente que até ameaça te "banir" caso você não compartilhe álbuns inteiros no Soulseek. Poucos usuários querem fazer seus próprios mixes e difundi-los na rede (e eu nem tou falando de fazer música! Só de escolher uma seqüencia, tipo aquela fitinha cassete que se faz pra namorada, saca?). Nunca vejo souseekers (eu me incluo nessa, mano, mea culpa) criando sets de DJs que provavelmente gerariam curiosidades novas ou apresentariam artistas desconhecidos à rede. O Soulseek tem potencial tecnológico pra virar comunidade (e a moçada até faz força: eles chegaram a lançar um selo virtual pra catar música de graça, idéia ótima, que aparentemente não vinga). Mas continua apenas como uma ferramenta para distribuição ilegal do trash da indústria. Até quando?

12.10.04

CIDADES

Rolou a estréia do programa Parababélico no rádio na última sexta-feira. Foi tudo na buena, muita empolgação, muita diversão. Rádio é a mídia da hora, mano. Pode crer.

Eis a lista, só fera:

1. Dead Combo - Um Homem Atravessa Lisboa na sua Querida Bicicleta - 3'14

2. Cibelle - Inútil Paisagem - 3'37

3. Nação Zumbi - A Cidade - 4'48

4. A Naifa - Bairro Velho - 4'22

5. Seu Jorge - Mangueira - 4'26

6. Eddie - Guia de Olinda - 4'05

Como dá pra sacar, foi um especialzinho sobre cidades. No programa anterior, o Sexta Livre, rolou também Cidade Mulher, de Noel Rosa na voz de Orlando Silva.

Não achar o seu próprio caminho na cidade é banal. Exige ignorância e nada mais. Mas se perder na cidade - do jeito que se perde na floresta - para isso, há que se ter um tipo diferente de habilidade. Placas, nomes de rua, transeuntes, telhados, quiosques e bares devem falar ao perambulante como um galho partindo sob seus passos lhe fala na floresta.
[Walter Benjamin]


Tá tarde, tou cansada. No som, tá rolando Los Hermanos. Acabei de perder uma a ganhar outra no xadrez. Gudnáiti.

5.10.04

A POESIA ESTÁ MORTA. VIVA A POESIA!

Quem me diz o nome de um Grande Poeta contemporâneo? Um Dante, um Camões? "Grande poeta contemporâneo" é contradição em termos, nossas narrativas heróicas migraram para outras plagas, quem sabe o cinema, o romance, o esporte, a música pop. Na música pop, por sinal, a narrativa heróica é construída não só da obra mas também das biografias. As letras e sons são sempre acompanhadas da atitude e da experiência vivida pelo autor, com o nosso às vezes pertubador e ainda assim inevitável culto à celebridade.

A poesia e os poetas já não fazem parte desse imaginário coletivo. "Poético", como adjetivo, virou insulto em meados dos anos 80 do século passado, um eufemismo para cafona, enquanto a expressão "declamar uns versos" foi usada pela última vez sem ironia ou sem despertar cenhos franzidos e ânsias de vômito lá pelos idos da primavera de 1952.

Claro, poesia continua a ser feita e o "poético" continua a existir, só que o formato de poemas impressos está em franca decadência. A imagem icônica do "poeta" está congelada no tísico romântico ou no beatnik bêbado. E a literatura oral medieval volta arrasando na música pop e na quase música muito pop do rap. A performatividade do autor passou a ser tão ou mais importante que as palavras. O autor hoje transforma sua vida na obra. Consciente disso ou não. Cínico ou naïve. Querendo ou não.

E o conceito de "Grande" poeta, "grande" isso ou aquilo também tá gasto, enjoa. É assim tão século 20... O "gênio". Será que ainda tem gente que tem tempo pra essa mitologia do gênio?

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Leia aqui texto sobre o encontro do Thaíde (do Thaíde e DJ Hum) com o repentista Patativa do Assaré.

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O comentário de a.p. no post do Gosto tá muito bão... Dêem uma olhada.

MEMES, CHEIROS, MUSA, CIÊNCIA

E o Nobel de Medicina/Psicologia foi pra uma pesquisa cabra da peste este ano: os americanos Richard Axel e Linda Buck levaram pra casa a estatueta e o checão de 1,3 milhão de dólares por conta de suas ruminações e anos passados em laboratório descobrindo como a gente cheira e como o cheiro e a memória dos aromas funcionam. Esses caras foram os primeiros a sacarem como e porque nós (que cheiramos tão mal perto de outros mamíferos) conseguimos acumular tantas imagens e sensações olfativas. Nem me arrisco a entender a coisa, mas tem a ver como umas proteínas e uns genes no nariz e uma celulinhas renováveis do cérebro. É por isso que a gente lembra de cheiros antigos (borracha cor-de-rosa do jardim de infância) ou perigosos (peixe podre).

(Esses cientistas inventam esses nomes de guerra, né não? Vai me dizer que a dupla foi batizada em nascimento como Axel & Buck. Tá.)

Agora falta a pesquisa da memória e da música. É, não falta, sou eu que não sei, tou sabendo. Bom, toda a vez que toca "Como uma Onda", do Lulu Santos, eu me vejo trajando um uniforme ridículo no campão esportivo do Colégio Mackenzie, fazendo a dancinha obrigatória do Dia do Mackenzie, isso porque em um ano os professores de Educação Física escolheram a canção como trilha daquela vexatória exibição. É uma sensação agri-doce, como que uma tatuagem mental da minha solitária adolescência, meu ódio contra aquela instituição educacional e minhas certezas na época inabaláveis. Claro, tem gente que prefere lembrar amores perdidos, mas eu nunca caí vítima desse mal. Mas recordo a minha "adorável" ex-roommate (codinome Devil) quando ouço "Spinning Away", do Brian Eno, o que é uma pena, porque gosto da música, embora o rapaz não tivesse muito senso de noção sobre como se trajar ou usar as madeixas. E por aí vai.

E tem também música sobre memória (em inglês). Eu juro que eu tinha uma lista aqui, mas acabei de perder. São meio chatas essas canções, no sentido de que nostalgia tem um certo ranço, uma coisa nhenhenhém.

O legal do petardo científico de Axel & Buck é que ele classifica essas sensações em genes, dá uma função pra elas, mas não simplifica coisa nenhuma, uma vez que são mais de 3.000 genes que se resposabilizam por mais de 10 mil odores armazenados na memória, todos em uma complexa rede que, no fim, visa proteger a raça. Claro que é bom achar que o leite vencido tá uma fedentina braba, evita piripaques ou óbitos prematuros. Outras funções não são tão claras. Imagino qual seria a função de memória de canções, sejam elas adoradas ou não. Talvez minha aversão a Lulu Santos funcione como um bloqueio natural contra o vício em drogas... Será que devo sempre me afastar de pessoas que gostam de Brian Eno?

Enfim. O Parababélico vai fazer um especial Memória no futuro. Mandem sugestões, tá?