Contrariamente à sabedoria popular (que no mais das vezes dá bola fora, mesmo que por vias tortas esteja, digamos, correta), gosto é uma dos coisas que mais se discute - em todos os âmbitos. Na verdade, briga-se feio por questões de gosto, e a turma do deixa-disso, em se tratando de debater o valor de Strokes versus Leonardo, ou Céline Dion versus Roberto Carlos, dá logo a boiada pra entrar no ranca-rabo, ignorando a modéstia e os bons costumes e disparando disparates com sua metralhadora de estereótipos a torto e a direito e à esquerda. A esquerda, por sinal, é a primeira a desencavar chavões arcaicos contra a "dominação estrangeira" e discursos afins que ficariam muito bem numa cartilha do extinto
CPT, que deus o tenha.
Eu comecei a pensar nisso tudo por causa, naturalmente, do gosto musical. Porque quando me deparei com a parada das rádios brasileiras e tentei fazer uma pequena análise chinfrim, entrei num conundrum dos bons. Não existe um crítico, um só, veja bem, um único crítico, seja ele acadêmico ou jornalístico, que "aprove" a parada de sucessos de lugar nenhum. E nunca haverá. Tem a questão de classe social, que é relativamente fácil de destrinchar. A crítica, especialmente no Sul Maravilha do Brasil, faz parte daquela camada média bem-educada que freqüentou colégio particular e fez faculdade e quem sabe até uma pós na PUC, e neguinho (branquinho?) se coloca acima do gosto popular (o contemporâneio, o do passado é sempre mitificado), com honrosas exceções (quem? me conta).
Ou seja, euzinha, por mais que odeie e resista, ou mesmo por causa disso, faço parte dessa cambada privilegiada de sem-noção, que passou a adolescência mamando rock inglês e portanto não suporto sertanejo e fica difícil analisar quando parece que sou eu, um "indivíduo independente e autônomo", que não gosto de sertanejo ou axé por razões puramente estéticas; e não eu, mero amontoado de preconceitos de classe, que desprezo o que "vem de baixo". Como alguém já deve ter percebido, isso é puro
Pierre Boudieu versão blog, mastigada, superficialzinha. Porém correta, a seu modo. Porque existem sempre vários corretos. O crítico que diz que Sandy e Júnior - o nosso número 1 - é de doer de tão ruim está certo (e está travando o bom combate social); e também quem chega e diz que a camada intelectual brazuca detesta Sandy e Júnior por conta da identificação completa e inconsciente com os valores da classe média intelectualizada e "bem informada", sempre buscando a vanguarda, também está certo.
Bordieu analisou a classe média francesa dizendo que seus integrantes estão sempre numa espécie de malhação contínua para ficar melhor, sempre se informando, estudando, correndo atrás. De forma que o que é bom no verão tende a deixar de interessar no outono, principalmente se desliza e se torna popular demais, esvaziando seu valor de "gosto de elite", que eliminaria a "distinção" entre as classes. Isso tudo fica bem melhor porque é manifestado como "natural", "estético". Nego diz "Leonardo não presta porque ______________ (coloque aqui sua condenação favorita: é sempre igual, as letras são pobres, é brega, a superprodução não tem nada a ver com música caipira autêntica, é comercial)." Nunca alguém diz "não gosto porque não pertence à minha classe".
E tem ainda outro lado da parada de sucessos acima: maioria absoluta de música nacional. Pra pensar sobre isso eu precisaria de mais espaço e mais tempo e mais disposição e mais conhecimento. Só um toque: é bacana. E é fenômeno quase único no mundo.
Por fim, quem tiver reflexões tortas sobre as paradas portuga e quebecoise e brazuca mande-as. "Gosto é como o c*, cada um tem o seu", diz o ditado, mas a gente pode e deve cutucar as partes, afinal é gostosinho - e muitas vezes necessário...